May 31, 2008

cartas à mãe

"Natal, 25 de maio de 1977

Mãe,

Olha, eu fui lá no Fantástico como a senhora pediu, mas não precisavam mais do rim que a senhora queria doar. Pra falar a verdade, eu não cheguei nem mesmo a oferecer. Voltei da porta, quando vi mais de mil pessoas com o rim na mão cantando: Ela merece! Ela merece!
Mas não se preocupe, logo a TV vai lançar outra campanha fantástica de doações. Sei porque encontreo lá dentro um senhor que sofre de salário mínimo, que está com nem trinta dias de vida, se não receber um transplante de comida.Espero que milhares de telespectadores se ofereçam para a doação. O bom é que, ao contrário do transplante de rim, esse transplante não tem perigo de rejeição. Vai servir o prato de comida de qualquer doador. Não importará se o feijão do doador for A negativo ou positivo. Vale A,B e até o feijão universal, daqueles pretos.
E ali mesmo, enquanto o salariador mínimo contava seu drama, um telespectador do Leblon se ofereceu dizendo que a doação não iria lhe fazer fata, pois le tinha sempre dois pratos de comida e poderia passar muito bem com um só no almoço.
Perguntei ao sensível doador o que a família dele achava dele doar um de seus pratos de comida e ele disse: "Minha vó é contra, disse que eu queria publicidade. Mas meus pais ainda estão discutindo o problema na psicoterapia de grupo deles."
Porém um médico amigo disse que esses transplantes não são tão simples assim. Apesar de não haver rejeição, o tal transplante poderá ter efeitos colaterais gravíssimos. Segundo ele, os pró-corpos irão destruir o prato de comida, objeto estranho ao corpo do salariador mínimo. E aí, mãe, haverá necessidade de transplantes diários!Ao ouvir isso, o telespectador doador do Leblon obtemperou que o Fantástico era só aos domingos, assim ele só doaria o prato de comida dele aos domingos.

Foi isso, mãe. A benção do seu filho, Henfil.

P.S. Soube lá ainda que a próxima campanha do Fantástico será para conseguir doações de votos para transplantar em senadores, portadores de eleição indireta. E vem aí uma campanha cheia de rejeições e difícil de conseguir doadores: é a do transplante de democracia."

2 Comments:

Blogger André Raboni said...

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11:18 PM  
Blogger André Raboni said...

Amanda,

que 'bola dentro' esse texto.

Muito bom. Muito bom! Ele desencadeou muitas idéias em mim!

Valeu!

Bj!

11:18 PM  

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